sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Comemorar, recordar

Texto de Rubem Alves tirado daqui originariamente publicado aqui link disponível apenas para assinantes do uol, mas também encontrado aqui.

"É PRECISO PREPARAR A ALMA com antecedência para o evento. O tempo da "comemoração" se aproxima. Comemorar quer dizer "trazer de novo à memória". Para quê? Para que se cumpra o ditado popular que diz "recordar é viver". Dentre todos os seres vivos os seres humanos são os únicos que se alimentam do passado. Eles comem aquilo que já deixou de existir.

Proust deu o nome de "Em Busca do Tempo Perdido" à sua obra clássica. Se está perdido irremediavelmente no passado, por que se entregar à tarefa inútil de procurá-lo?

Por fora, no mundo cotidiano do trabalho, estamos em busca de coisas novas. Mas a alma, nas penumbras em que mora, vive à procura de coisas velhas. Alma é saudade. Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam. Foram perdidas e, a despeito disso, continuam presentes como dor: "...Que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi..." Saudade é a presença de uma ausência.

Para a saudade não existe cura. Tudo o que podemos dar a ela como consolo é inútil. Por isso, Fernando Pessoa escreveu: "Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante. Faltar-me-á sempre qualquer coisa, sobrar-me-á sempre de que desejar..." A alma é como um queijo suíço, toda cheia de buracos que doem no seu vazio...

Há um esquecer que é uma felicidade. É como mar que limpa e alisa a areia que os humanos haviam pisado na véspera sem pedir desculpas. Já tive essa estranha sensação bem cedo na praia diante da areia lisa, um sentimento de culpa por machucá-la com meus pés... O esquecimento alisa a areia. Tudo fica puro, como se fosse a primeira vez. Isso, do lado de fora. Mas lá no fundo, onde mora a saudade, não há esquecimento. Porque lá só moram as coisas que foram amadas. E o amor não suporta o esquecimento. "Aquilo que a memória ama fica eterno", escreveu a Adélia.

Há a estória daquele homem dilacerado pela dor da saudade de sua amada que morrera. Em desespero, dirigiu-se aos deuses pedindo que a devolvessem. "A morte é mais forte que nós", responderam os deuses. "Não podemos devolver o que a morte levou. Mas podemos pôr um fim ao seu sofrimento. Podemos fazê-lo esquecer a sua amada. Podemos curá-lo da saudade..." Horrorizado o homem respondeu: "Não, mil vezes não! Pois é o meu sofrimento que a mantém viva junto de mim!"

Palavra boa para dizer isso, parente de "comemorar", é "re-cordar". Pus o hífen de propósito para destacar o "cordar", que vem do latim "cor", que quer dizer "coração". Há memórias que moram na cabeça, muito úteis. Se nos esquecemos delas, cuidado! Pode ser Alzheimer se anunciando! Essas memórias não doem, são informações que levamos no bolso, ferramentas. Mas há outras memórias que moram no coração, são parte da gente. O Chico sabia e escreveu: "Oh pedaço arrancado de mim..."

Já estou preparando a minha alma para o evento. O Natal vai fisgar o membro que já perdi. Perdi a minha infância. Gostaria mesmo era de ir para um mosteiro, longe de comilanças, presentes e risos. Num mosteiro eu poderia experimentar a bem-aventurança na alma que Fernando Pessoa descreveu como a alegria de não precisar de estar alegre... Eu gosto da minha tristeza natalina. Ela é verdadeira. Sou como aquele apaixonado que não queria ser curado da saudade..."

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Não Nos Contaram

Hoje é o momento ideal pra falar de sacanagem.
Mas nada de ménage à trois, sexo selvagem
e práticas perversas, sinto muito.
Pretendo, sim, é falar das sacanagens que fizeram com a gente.
Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer,
só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos.
Não nos contaram que amor não é acionado nem chega com hora marcada.
Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja,
e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade.

Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida
merece carregar nas costas a responsabilidade de completar
o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo.
Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável.

Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um",
duas pessoas pensando igual, agindo igual, que isso era que funcionava.
Não nos contaram que isso tem nome: anulação.
Que só sendo indivíduos com personalidade própria
é que poderemos ter uma relação saudável.

Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório
e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.
Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados,
que os que transam pouco são caretas,
que os que transam muito não são confiáveis,
e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto.
Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.

Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz,
a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade.
Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas,
são alienantes, e que podemos tentar outras alternativas.

Ah, nem contaram que ninguém vai contar.
Cada um vai ter que descobrir sozinho.
E aí, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo,
vai poder ser muito feliz se apaixonar por alguém.

(Martha Medeiros)

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Afinidade

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.

O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação,
o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.


É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.


Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois
que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples
e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.


Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos
fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.


Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.


Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar.
Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.


Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.


Só entra em relação rica e saudável com o outro,
quem aceita para poder questionar.
Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar,
não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.
E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.
Isso é afinidade.
Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita
o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.
Questionamento de afins, eis a (in)fluência.
Questionamento de não afins, eis a guerra.


A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.
Independente dele. A quilômetros de distância.
Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.
Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar,
por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.
Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos,
veremos ou falaremos.


Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem
para buscar sintomas com pessoas distantes,
com amigos a quem não vemos, com amores latentes,
com irmãos do não vivido?


A afinidade é singular, discreta e independente,
porque não precisa do tempo para existir.
Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu
o vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação
exatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas
nem pelas pessoas que as tem.


Por prescindir do tempo e ser a ele superior,
a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades
ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.
Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós,
para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.

Sensível é a afinidade.
É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.
Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau,
porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.


Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois
encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir
restituir o clima afetivo de antes,
é alguém com quem a afinidade foi temporária.
E afinidade real não é temporária. É supratemporal.
Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta,
ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.
A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas,
plantios de resultado diverso.


Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças,
é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas,
quantos das impossibilidades vividas.


Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou,
sem lamentar o tempo da separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais,
a expressão do outro sob a forma ampliada e
refletida do eu individual aprimorado.

Arthur da Távola


quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sem pedir licença


(texto de Rômulo Barbosa)

Não há experiência mais surpreendentemente bela do que acompanhar o crescimento dos filhos. A cada dia, uma novidade – nem sempre boa, é verdade -, mas uma novidade, que transforma nossas vidas e nos faz ainda menores frente à dádiva da existência humana.

Irmão de muitos irmãos, nunca dantes houvera percebido essa engenharia divina, até ser pai. Quando bebês, frágeis, delicadíssimos, queremos mostrá-los ao mundo como frutos do amor (ou de um amor), símbolos da sentença bíblica: "crescei-vos e multiplicai-vos".

Quando vão crescendo – e como crescem - , assola-nos a constatação do poeta Afonso Romano de Santana, revelada na crônica "Antes que elas cresçam": " Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. (...) Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura ".

E eu vivo, todos os dias e como milhões de pais, essa saudável perplexidade oferecida pelos nossos rebentos. O meu filho-varão, que carrega – para protesto de alguns que vêem no fato algum pedantismo, e para orgulho futuro dele – o meu próprio nome, foi delicadamente apelidado por um amigo de "tsunami" e, depois, de "Conan, o bárbaro". Mas isso foi há dois anos... Hoje ele já tem... quatro... Isso mesmo, quatro aninhos. Já não risca as paredes, nem joga meu relógio (Mido) e celular (top de linha) do sétimo andar.

Agora é diferente. Quer testar as coisas. Felizmente temos rede de proteção na varanda. À repreensão de que se engolisse uma bateria – daquelas redondinhas para brinquedo – poderia morrer, acercou-se, certo dia, da cama onde eu cochilava e disse-me com um ar de orgulho: "papai, não morri!!!". Bem, eu tinha certeza disso, afinal, ele estava ali, diante de mim, exalando peraltice por todos os poros. E repetiu: "papai, não morri!!". Resolvi desvendar o mistério e, singelamente, perguntei-lhe: "não morreu por que, meu filho?". Ao que ele, entre triunfante, respondeu: "Engoli uma bateria e não morri!!". Eu quase morreria depois disso, entre ligações para médicos, raio-X e buscas das quais nós – a mãe e eu – preferíamos esquecer.

Doutra feita, na volta do colégio, tentei puxar conversa: "E aí, meu filho, como foi o dia na escola hoje?". "Legal, pai", replicou na bucha, sem demonstrar qualquer interesse no diálogo que eu queria estabelecer. Insisti: "E, então, o que você fez hoje?". "Tudoo que a tia mandou, pai". E nada mais foi dito nem perguntado, no trajeto de três minutos que separam nossa casa do colégio. Frustrado, até hoje não consegui descobri o que "a tia mandou".

O contato dele com a tecnologia foi cedo. Mal sabia falar e já foi flagrado mexendo no computador. Já tinha ligado estabilizador, monitor e CPU. Estava agora fazendo diatribes com o mouse e o teclado: "Que é que você está fazendo aí, meu filho?", inquiri em tom ameaçador. "Estou entrando na 'intenét', papai", respondeu, fazendo inveja ao Bill Gates.

A irmã, meu Deus, a irmã só vem com perguntas de alta complexidade. Tem oito anos e, aos seis e meio, no mesmo revelador caminho para a escola, o rádio tocando um hit da Rita, a Lee, apoderou-se do refrão da música e tascou: "o que é amor, papai?". Enquanto eu ganhava tempo para responder àquela indagação filosófica e ela, ao mesmo tempo, ouvia o resto da canção, emendou outra: "e sexo, papai?". Fiquei com raiva do programador da rádio. Não tinha nada que estar tocando essa música às sete e pouco da manhã. Que coisa!!!

E, agora, quer saber de tudo: "papai, qual o país mais tecnológico do mundo?; por que tanta violência nos telejornais?; por que a guerra no Iraque? E a Operação Navalha pai?". O quê, Como, Onde, Por quê? É bem verdade que, sendo filha de dois jornalistas, essas perguntas lhe tenham cabimento, mas...

Acho que é mais fácil preencher o formulário anual do IR do que ter tudo "na ponta da língua" para saciar a sede de conhecimento dos pimpolhos.

Conforta-me, mais uma vez, o mestre Romano de Santanna: "É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença ."

sábado, 24 de fevereiro de 2007

A neutralização da culpa

Plantar árvores para compensar a emissão de poluentes não alivia o o efeito estufa, mas é parte da solução.

De tempos em tempos, práticas criadas para reduzir a degradação do meio ambiente ganham notoriedade especial. Com o passar dos anos, algumas conquistam mais solidez e a atenção quase exclusiva das pessoas. Dois exemplos recentes são a febre de consumo de alimentos orgânicos e a "neutralização", uma invenção de economistas, especialistas em barganhas. A barganha do "comércio verde" é baseada na idéia de que quem polui a atmosfera pode e deve fazer alguma coisa para compensar, ou neutralizar, a agressão. Em geral, isso se resume a plantar uma árvore. Entre todos os poluentes da atmosfera, o principal alvo da neutralização é o dióxido de carbono (CO2), gás responsável por impedir a dissipação para o espaço das ondas de calor resultantes da reflexão da luz do sol sobre a superfície do planeta. O metabolismo de plantas na etapa de crescimento consome grande volume de CO2. A árvore, então, mantém o carbono aprisionado em sua estrutura por décadas – ou até morrer ou ser cortada e transformada em carvão.

Quem não se dispõe a plantar sua própria árvore neutralizadora pode recorrer a especialistas. Entidades ambientalistas e ONGs podem plantar árvores a pedido da pessoa disposta a tornar sua presença menos onerosa para a saúde ambiental do planeta. Pagam-se pelo serviço entre 10 e 30 reais por muda. O plantio não precisa ocorrer, obviamente, na região onde o dióxido de carbono foi emitido. Existe ainda algum debate acadêmico sobre a real influência humana na aceleração do efeito estufa – fenômeno que, em níveis normais, garante a existência de vida na Terra. Mas, do ponto de vista da percepção popular, essa questão está selada. A vida civilizada oferece risco ao planeta. Ponto. Quem puder fazer alguma coisa para ajudar estará sendo um terráqueo responsável.

A neutralização foi inventada por uma entidade inglesa em 1997. Em dez anos, essa prática passou a ser levada a sério pelas grandes empresas mundiais, como a companhia aérea British Airways, e por celebridades como o ator Leonardo DiCaprio e os Rolling Stones. Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, veio ao Brasil no ano passado para lançar Uma Verdade Inconveniente, seu brado de alerta sobre a responsabilidade humana na aceleração ruinosa do aquecimento global. Gore fez questão de neutralizar sua viagem (o gás emitido pela turbina do jato que o trouxe, principalmente) com o plantio de 53 árvores em São Carlos, no interior paulista. A impressão e distribuição da edição brasileira do livro de Gore também foi neutralizada, com o plantio de 136 árvores. Gore deixou sementes. A neutralização está se tornando uma prática bastante comum também no Brasil. O Carnaval de São Paulo será neutro. Não é isso que vocês estão pensando! É neutro não no sentido de sem muita graça... sem ritmo. Usa-se aqui o termo em sua nova acepção ambiental.

Desde os carros alegóricos até a energia do Sambódromo, tudo será neutralizado. Custo ambiental da folia? Mil e duzentas árvores. Até a missa que o papa Bento XVI celebrará em São Paulo, em maio, será neutra, com o patrocínio da prefeitura paulistana. A iniciativa cria uma situação inusitada: o culto será católico, mas a neutralização, multirreligiosa. O pagamento em árvores será bancado por todos os contribuintes da cidade, católicos e não católicos.

Mas qual é a real eficácia da neutralização? Para alguns cientistas, ela é apenas a materialização do sonho quintessencial do politicamente correto acomodado: nenhum hábito de produção e consumo precisa ser mudado, desde que se plantem algumas dezenas de mudas. Com a neutralização, dizem esses críticos, a poluição torna-se moralmente permitida – ou pelo menos um pouco mais aceitável. Além disso, ainda que as árvores novas funcionem como filtros, tirando o CO2, calcula-se que seria preciso cobrir com elas cada metro quadrado de toda a superfície do planeta para neutralizar o excesso de dióxido de carbono acumulado na atmosfera. Tudo isso é verdade. Mas a ciência ambiental é ainda tão especulativa que tanto o cético quanto o fanático preservacionista podem estar errados. Na dúvida, é bom evitar os excessos. Ainda que não resolva o problema do efeito estufa, a neutralização é parte da solução. "É melhor neutralizar do que não fazer nada. É um começo", diz o engenheiro florestal Paulo Braga, diretor da Max Ambiental, empresa que elabora projetos de neutralização de carbono. Para Mario Monzoni, coordenador do centro de estudos em sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas, a neutralização só será eficaz se for acompanhada de uma drástica diminuição da queima de combustíveis fósseis no mundo. Caso contrário, não passará de mais um modismo.


Guiadas pelo marketing, as grandes companhias juram fazer as duas coisas: reduzir os poluentes e neutralizar as emissões que forem inevitáveis. "As empresas estão tentando dar uma resposta ao atual sentimento de culpa das pessoas", disse Rony Rodrigues, da Box 1824, consultoria especializada em análise de mercado. Num período de cinco anos, a companhia aérea inglesa British Airways reduziu em 8% a emissão de dióxido de carbono liberado na queima de querosene dos aviões. A companhia também cobra uma taxa extra dos viajantes que desejarem neutralizar seus vôos. Custa 14,49 dólares neutralizar o trecho Londres–São Paulo, responsável pela emissão de 1,07 tonelada de CO2 por passageiro. O parque de diversões Playcenter foi uma das últimas empresas brasileiras a aderir à moda: neutralizará o carbono do funcionamento de 35 atrações, plantando 10 904 árvores por ano até 2011. Famosos também surfam na nova onda ambiental. A dupla Sandy & Junior vai neutralizar todos os setenta shows deste ano e a gravação do seu novo CD. A Pindorama, produtora da atriz Regina Casé e de seu marido, Estevão Ciavatta, neutralizou, com 28 árvores, um comercial feito para a Africa, agência de Nizan Guanaes. As mudas plantadas serviram para abater os deslocamentos da equipe de cinqüenta pessoas, os gastos com energia e o lixo da produção. Brinca a atriz, para desespero dos ambientalistas: "Com a quantidade de árvores que plantei, já posso queimar muito carbono". O administrador de empresas Ronney Saverbronn da Cunha, 37, contratou uma consultoria para neutralizar um curso de MBA feito no ano passado. Serão necessárias sete árvores para compensar o custo ambiental da fabricação das 3.120 folhas de papel usadas, do trajeto de 15 quilômetros feito de carro durante noventa dias e da energia usada em sala de aula. "Agora pretendo neutralizar o nascimento do meu filho, Gabriel", disse Ronney, cuja mulher, Denise, está grávida de oito meses.

Mas quem se encarrega de fazer tantos cálculos e plantar tantas árvores? E quem fiscaliza tudo isso? Existe uma miríade de entidades especializadas na neutralização. A Max Ambiental já fez uma dezena de projetos no verão de 2005/2006. Para este ano, já há trinta outros engatados. A Iniciativa Verde, que também faz a neutralização para pessoas e empresas, teve quinze projetos em 2006. Desde janeiro, trabalha em outros 35. A Max Ambiental atua em parceria com a SOS Mata Atlântica, entidade que planta árvores muito antes da moda da neutralização. "Para nós, o plantio não é novidade. O que interessa é que as empresas, ainda que em busca do marketing, tenham aderido", declarou Adauto Basílio, diretor de captação de recursos e responsável pelos programas de reflorestamento da entidade. O custo dos projetos depende do número de árvores e das espécies plantadas. Pode chegar centenas de milhares de reais. Engenheiros florestais e especialistas em crédito de carbono estão sendo disputados a tapa pelas empresas especializadas em neutralização. Tudo para aliviar a culpa de clientes, grandes e pequenos, em faturamento e lucro. A última edição do relatório Carbon Down Profits Up, da entidade inglesa Climate Group, mostra uma evolução de adesões à causa: 74 companhias, de onze países, preocupadas com as emissões de carbono.

Como a neutralização não é obrigatória, nenhuma entidade governamental fiscaliza se os cálculos estão corretos ou se as árvores são realmente plantadas. Para não cair no conto-do-vigário, é bom verificar se a prestadora de serviço contrata alguma auditoria externa conhecida para analisar a execução dos trabalhos. As entidades mais sérias fazem isso. Como qualquer outro modismo, esse também tem sua cota de aberrações e hipocrisia. Palco de alguns dos piores crimes de corrupção (sete envolvendo até órgãos ambientais) da história brasileira, a Câmara dos Deputados anunciou que vai neutralizar suas atividades. Já foi encomendado um estudo para calcular a emissão de dióxido de carbono com transporte e consumo de energia elétrica dos 513 deputados. A idéia é compensar os danos ao meio ambiente. Pena que os parlamentares não possam neutralizar também danos de outra natureza.

Com sete árvores, o administrador de empresas Ronney da Cunha vai neutralizar o MBA que cursou em 2006. Gostou da idéia. Ele e sua mulher, Denise, planejam neutralizar o nascimento de Gabriel, o segundo filho do casal.

Menos fumaça no céu: a British Airways oferece passagens neutralizadas a passageiros que pagarem um pouco mais.

Na moda: a missa celebrada pelo papa Bento XVI em São Paulo terá a emissão de CO2 compensada.

Julia Duailibi Com reportagem de Cíntia Borsato

Fonte: http://veja.abril.com.br/210207/p_066.shtml (Conteúdo exclusivo para assinantes)

Parabéns, calouros de 2007

Mais de 1,5 milhão de jovens brasileiros começam neste mês a derradeira etapa de sua educação. Meus parabéns! O grande problema que vocês vão enfrentar é que o conhecimento humano está dobrando a cada nove meses. Seguindo esse raciocínio, dois anos depois de formados, entre 60% e 80% de tudo o que vocês aprenderam estará obsoleto, dependendo da profissão. Isso se seus professores ensinarem o que há de mais novo em sua especialidade, o que nem sempre acontecerá.

Vocês provavelmente encontrarão três tipos de professor. Os ultraconservadores, que ainda ensinam "conhecimentos" de 1880. Na realidade, dogmas de um mundo que não existe mais. Percebam como vocês encontrarão muito poucos professores que se definem como neoliberais, neomarxistas, neofreudianos ou neo alguma coisa. Neo significa novo. No fundo, não são progressistas como dizem, mas ultraconservadores. Acham que o mundo não mudou ou então pararam no tempo, como todo conservador.

Outro grupo de professores é o dos enganadores, aqueles que não se atualizam e dão aulas mesmo assim. Não se reciclam há anos, ensinam o que era novo dez anos atrás. Ou, pior, ensinam as mesmas coisas que eles próprios aprenderam quando estudavam. Se tiverem sorte, vocês também encontrarão um pequeno grupo de professores criativos e visionários, que criam e mostram como será o mundo de amanhã. São eles que vão inspirá-los a tentar fazer o que ninguém fez antes, são eles também que inspiraram quase todos os jovens que inventaram esses sites na internet.

O que muitos de seus professores ainda não perceberam é que o conceito de conhecimento humano mudou. Não existe mais o conhecimento perene, guardado a sete chaves, restrito às "lides acadêmicas". As universidades não são mais as "casas do saber", as "catedrais do conhecimento", como muitas se autodefinem. Hoje, o conhecimento humano é de curta duração, poderíamos até dizer descartável, usado duas ou três vezes e jogado fora, quando não faz mais sentido guardá-lo. Isso os obrigará a repensar e a gerar novo conhecimento, porque provavelmente o futuro precisará de soluções nunca vistas.

Estou exagerando um pouco para que vocês entendam aonde quero chegar. O importante é vocês aprenderem a criar conhecimento, e não somente a usar o conhecimento do passado. Eu utilizo o termo administrativo "conhecimento just in time". Vocês terão muitos problemas a resolver, e terão de saber como analisá-los, gerando uma solução ou "conhecimento" apropriado, que não necessariamente servirá para o resto da vida. Daqui a alguns anos, a situação será outra, requerendo nova análise e solução.

Que algumas coisas são perenes, como 2 + 2 = 4 e muitas leis da física, não há a menor dúvida. Mas o que estou sugerindo é que vocês tomem o cuidado de sempre questionar seus professores, para se certificar de que o conhecimento do passado será de fato útil no futuro. Max Weber, Keynes e Freud escreveriam a mesma coisa se estivessem vivos hoje? É isso que vocês precisam descobrir. Até pode ser que sim, mas é melhor desconfiar sempre.

O que eu peço a vocês, calouros de 2007, é que se concentrem em como gerar conhecimento. Como observar, como identificar variáveis relevantes, os personagens vitais do problema e os interesses. Como analisar alternativas e tomar decisões. Usei muito pouco das teorias que me ensinaram na faculdade. Meu sucesso profissional foi devido muito mais ao conhecimento que eu próprio gerei, que eu mesmo criei, do que às teorias e técnicas que mal me ensinaram.

A "faculdade" que vocês precisam adquirir é a da criação, da criatividade, da geração de conhecimento, e não a da erudição, do academicismo ou a da decoreba que se alastra pelo país.

Infelizmente, vocês terão de agradar aos dois primeiros tipos de professor repetindo o passado que eles querem ouvir, senão não serão aprovados. Mas aproveitem os próximos quatro ou cinco anos procurando e prestigiando os professores criativos, aqueles que de fato pesquisam o futuro e não somente o passado, e juntos criem o conhecimento para resolver os problemas atuais do Brasil, e mandem-nos para mim ou coloquem na internet.

Saibam distinguir quem é quem, e boa sorte!



Stephen Kanitz é formado pela Harvard Business School
(www.kanitz.com.br)
Fonte: http://veja.abril.com.br/210207/ponto_de_vista.shtml (conteúdo exclusivo para assinantes)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Projeto contra o racismo inunda Salvador de painéis fotográficos

É a cidade mais negra do Brasil, segundo as estatísticas: mais de 75% da população de Salvador -2,6 milhões de habitantes ao todo- são negros ou mulatos. Presente nos romances de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, nas canções de Dorival Caymmi ou Carlinhos Brown, no candomblé e na capoeira, foi a primeira capital do país e o primeiro porto de chegada de escravos. Hoje é um dos focos da diáspora africana.

Até 16 de fevereiro, a capital do estado da Bahia, fundada em 1549, recebe a maior exposição ao ar livre de sua história: 1.501 painéis com fotografias de mulheres, crianças e homens afro-descendentes ocupam as fachadas de edifícios no centro e na periferia, espalham-se por praças e avenidas, deixam-se ver na entrada dos centros comerciais. No total, são 9.073 m2 com fotos como as das campanhas publicitárias que, paradoxalmente, costumam mostrar jovens modelos louras ou de pele clara.

O projeto Salvador Negroamor revela a bela face africana de Salvador da Bahia. Ele transforma a cidade em uma sala de exposição para os que não pisaram e jamais pisarão numa galeria de arte. Para tanto, o fotógrafo, publicitário e promotor cultural Sérgio Guerra, 45, retratou cerca de mil pessoas anônimas. Tenta dar destaque aos que não são visíveis, e provocar uma reflexão. "Vejo uma cidade dividida, preconceituosa e muitas vezes racista.

O conceito de cidade alta e cidade baixa aqui é literal", explicou no jornal "Correio da Bahia" esse pernambucano, filho de um político perseguido pela ditadura e de uma militante do movimento em defesa dos favelados. Há um abismo social e econômico determinado pela hierarquia de raças: o índice de pobreza é diretamente proporcional à cor da pele. Os níveis mais baixos de educação, os empregos menos atraentes e os piores salários são para os afro-descendentes.

Divulgar a cultura

Salvador Negroamor também é o nome de uma associação civil sem fins lucrativos cujos objetivos são combater o racismo, divulgar a cultura africana e afro-descendente, desenvolver projetos culturais, educacionais, sociais e econômicos com o fim de melhorar a qualidade de vida e das comunidades necessitadas; tentar estabelecer padrões de convivência, referências e exemplos em prol da democracia racial.

Além dos painéis espalhados por toda a cidade, foi publicado um livro com uma seleção dessas fotos - escolhidas entre mais de 16 mil - e um disco com gravações de filhos ilustres como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Margareth Menezes, Virgínia Rodrigues e Mateus Aleluia. A ONG Salvador Negroamor criou um portal de discussão e informação (www.salvadornegroamor.org.br). Também organiza uma escola para alfabetização de adultos e reforço escolar para filhos dos trabalhadores do mercado de São Joaquim. Essas ações deverão culminar com a criação de um fórum mundial africanista permanente em 2009.

Em um texto intitulado "Sinfonia em Negro", o escritor José Eduardo Agualusa diz: "Atenção, pois: estas não são só imagens destinadas a encantar; são, mais que isso, parte de um projeto político destinado a inquietar. É uma revolução que sai à rua". O primeiro movimento de uma sinfonia em negro, em "Muitas Cores", Paulinho Camafeu cantava: "Branco, se você soubesse / o valor que negro tem / tu tomava banho de piche, ficava preto também".

Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2007/02/13/ult581u1993.jhtm
(Link do uol apenas para assinantes.)