quinta-feira, 19 de julho de 2007

Não Nos Contaram

Hoje é o momento ideal pra falar de sacanagem.
Mas nada de ménage à trois, sexo selvagem
e práticas perversas, sinto muito.
Pretendo, sim, é falar das sacanagens que fizeram com a gente.
Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer,
só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos.
Não nos contaram que amor não é acionado nem chega com hora marcada.
Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja,
e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade.

Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida
merece carregar nas costas a responsabilidade de completar
o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo.
Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável.

Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um",
duas pessoas pensando igual, agindo igual, que isso era que funcionava.
Não nos contaram que isso tem nome: anulação.
Que só sendo indivíduos com personalidade própria
é que poderemos ter uma relação saudável.

Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório
e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.
Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados,
que os que transam pouco são caretas,
que os que transam muito não são confiáveis,
e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto.
Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.

Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz,
a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade.
Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas,
são alienantes, e que podemos tentar outras alternativas.

Ah, nem contaram que ninguém vai contar.
Cada um vai ter que descobrir sozinho.
E aí, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo,
vai poder ser muito feliz se apaixonar por alguém.

(Martha Medeiros)

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Afinidade

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.

O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação,
o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.


É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.


Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois
que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples
e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.


Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos
fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.


Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.


Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar.
Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.


Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.


Só entra em relação rica e saudável com o outro,
quem aceita para poder questionar.
Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar,
não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.
E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.
Isso é afinidade.
Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita
o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.
Questionamento de afins, eis a (in)fluência.
Questionamento de não afins, eis a guerra.


A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.
Independente dele. A quilômetros de distância.
Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.
Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar,
por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.
Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos,
veremos ou falaremos.


Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem
para buscar sintomas com pessoas distantes,
com amigos a quem não vemos, com amores latentes,
com irmãos do não vivido?


A afinidade é singular, discreta e independente,
porque não precisa do tempo para existir.
Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu
o vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação
exatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas
nem pelas pessoas que as tem.


Por prescindir do tempo e ser a ele superior,
a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades
ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.
Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós,
para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.

Sensível é a afinidade.
É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.
Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau,
porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.


Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois
encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir
restituir o clima afetivo de antes,
é alguém com quem a afinidade foi temporária.
E afinidade real não é temporária. É supratemporal.
Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta,
ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.
A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas,
plantios de resultado diverso.


Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças,
é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas,
quantos das impossibilidades vividas.


Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou,
sem lamentar o tempo da separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais,
a expressão do outro sob a forma ampliada e
refletida do eu individual aprimorado.

Arthur da Távola


quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sem pedir licença


(texto de Rômulo Barbosa)

Não há experiência mais surpreendentemente bela do que acompanhar o crescimento dos filhos. A cada dia, uma novidade – nem sempre boa, é verdade -, mas uma novidade, que transforma nossas vidas e nos faz ainda menores frente à dádiva da existência humana.

Irmão de muitos irmãos, nunca dantes houvera percebido essa engenharia divina, até ser pai. Quando bebês, frágeis, delicadíssimos, queremos mostrá-los ao mundo como frutos do amor (ou de um amor), símbolos da sentença bíblica: "crescei-vos e multiplicai-vos".

Quando vão crescendo – e como crescem - , assola-nos a constatação do poeta Afonso Romano de Santana, revelada na crônica "Antes que elas cresçam": " Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. (...) Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura ".

E eu vivo, todos os dias e como milhões de pais, essa saudável perplexidade oferecida pelos nossos rebentos. O meu filho-varão, que carrega – para protesto de alguns que vêem no fato algum pedantismo, e para orgulho futuro dele – o meu próprio nome, foi delicadamente apelidado por um amigo de "tsunami" e, depois, de "Conan, o bárbaro". Mas isso foi há dois anos... Hoje ele já tem... quatro... Isso mesmo, quatro aninhos. Já não risca as paredes, nem joga meu relógio (Mido) e celular (top de linha) do sétimo andar.

Agora é diferente. Quer testar as coisas. Felizmente temos rede de proteção na varanda. À repreensão de que se engolisse uma bateria – daquelas redondinhas para brinquedo – poderia morrer, acercou-se, certo dia, da cama onde eu cochilava e disse-me com um ar de orgulho: "papai, não morri!!!". Bem, eu tinha certeza disso, afinal, ele estava ali, diante de mim, exalando peraltice por todos os poros. E repetiu: "papai, não morri!!". Resolvi desvendar o mistério e, singelamente, perguntei-lhe: "não morreu por que, meu filho?". Ao que ele, entre triunfante, respondeu: "Engoli uma bateria e não morri!!". Eu quase morreria depois disso, entre ligações para médicos, raio-X e buscas das quais nós – a mãe e eu – preferíamos esquecer.

Doutra feita, na volta do colégio, tentei puxar conversa: "E aí, meu filho, como foi o dia na escola hoje?". "Legal, pai", replicou na bucha, sem demonstrar qualquer interesse no diálogo que eu queria estabelecer. Insisti: "E, então, o que você fez hoje?". "Tudoo que a tia mandou, pai". E nada mais foi dito nem perguntado, no trajeto de três minutos que separam nossa casa do colégio. Frustrado, até hoje não consegui descobri o que "a tia mandou".

O contato dele com a tecnologia foi cedo. Mal sabia falar e já foi flagrado mexendo no computador. Já tinha ligado estabilizador, monitor e CPU. Estava agora fazendo diatribes com o mouse e o teclado: "Que é que você está fazendo aí, meu filho?", inquiri em tom ameaçador. "Estou entrando na 'intenét', papai", respondeu, fazendo inveja ao Bill Gates.

A irmã, meu Deus, a irmã só vem com perguntas de alta complexidade. Tem oito anos e, aos seis e meio, no mesmo revelador caminho para a escola, o rádio tocando um hit da Rita, a Lee, apoderou-se do refrão da música e tascou: "o que é amor, papai?". Enquanto eu ganhava tempo para responder àquela indagação filosófica e ela, ao mesmo tempo, ouvia o resto da canção, emendou outra: "e sexo, papai?". Fiquei com raiva do programador da rádio. Não tinha nada que estar tocando essa música às sete e pouco da manhã. Que coisa!!!

E, agora, quer saber de tudo: "papai, qual o país mais tecnológico do mundo?; por que tanta violência nos telejornais?; por que a guerra no Iraque? E a Operação Navalha pai?". O quê, Como, Onde, Por quê? É bem verdade que, sendo filha de dois jornalistas, essas perguntas lhe tenham cabimento, mas...

Acho que é mais fácil preencher o formulário anual do IR do que ter tudo "na ponta da língua" para saciar a sede de conhecimento dos pimpolhos.

Conforta-me, mais uma vez, o mestre Romano de Santanna: "É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença ."