sábado, 24 de fevereiro de 2007

A neutralização da culpa

Plantar árvores para compensar a emissão de poluentes não alivia o o efeito estufa, mas é parte da solução.

De tempos em tempos, práticas criadas para reduzir a degradação do meio ambiente ganham notoriedade especial. Com o passar dos anos, algumas conquistam mais solidez e a atenção quase exclusiva das pessoas. Dois exemplos recentes são a febre de consumo de alimentos orgânicos e a "neutralização", uma invenção de economistas, especialistas em barganhas. A barganha do "comércio verde" é baseada na idéia de que quem polui a atmosfera pode e deve fazer alguma coisa para compensar, ou neutralizar, a agressão. Em geral, isso se resume a plantar uma árvore. Entre todos os poluentes da atmosfera, o principal alvo da neutralização é o dióxido de carbono (CO2), gás responsável por impedir a dissipação para o espaço das ondas de calor resultantes da reflexão da luz do sol sobre a superfície do planeta. O metabolismo de plantas na etapa de crescimento consome grande volume de CO2. A árvore, então, mantém o carbono aprisionado em sua estrutura por décadas – ou até morrer ou ser cortada e transformada em carvão.

Quem não se dispõe a plantar sua própria árvore neutralizadora pode recorrer a especialistas. Entidades ambientalistas e ONGs podem plantar árvores a pedido da pessoa disposta a tornar sua presença menos onerosa para a saúde ambiental do planeta. Pagam-se pelo serviço entre 10 e 30 reais por muda. O plantio não precisa ocorrer, obviamente, na região onde o dióxido de carbono foi emitido. Existe ainda algum debate acadêmico sobre a real influência humana na aceleração do efeito estufa – fenômeno que, em níveis normais, garante a existência de vida na Terra. Mas, do ponto de vista da percepção popular, essa questão está selada. A vida civilizada oferece risco ao planeta. Ponto. Quem puder fazer alguma coisa para ajudar estará sendo um terráqueo responsável.

A neutralização foi inventada por uma entidade inglesa em 1997. Em dez anos, essa prática passou a ser levada a sério pelas grandes empresas mundiais, como a companhia aérea British Airways, e por celebridades como o ator Leonardo DiCaprio e os Rolling Stones. Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, veio ao Brasil no ano passado para lançar Uma Verdade Inconveniente, seu brado de alerta sobre a responsabilidade humana na aceleração ruinosa do aquecimento global. Gore fez questão de neutralizar sua viagem (o gás emitido pela turbina do jato que o trouxe, principalmente) com o plantio de 53 árvores em São Carlos, no interior paulista. A impressão e distribuição da edição brasileira do livro de Gore também foi neutralizada, com o plantio de 136 árvores. Gore deixou sementes. A neutralização está se tornando uma prática bastante comum também no Brasil. O Carnaval de São Paulo será neutro. Não é isso que vocês estão pensando! É neutro não no sentido de sem muita graça... sem ritmo. Usa-se aqui o termo em sua nova acepção ambiental.

Desde os carros alegóricos até a energia do Sambódromo, tudo será neutralizado. Custo ambiental da folia? Mil e duzentas árvores. Até a missa que o papa Bento XVI celebrará em São Paulo, em maio, será neutra, com o patrocínio da prefeitura paulistana. A iniciativa cria uma situação inusitada: o culto será católico, mas a neutralização, multirreligiosa. O pagamento em árvores será bancado por todos os contribuintes da cidade, católicos e não católicos.

Mas qual é a real eficácia da neutralização? Para alguns cientistas, ela é apenas a materialização do sonho quintessencial do politicamente correto acomodado: nenhum hábito de produção e consumo precisa ser mudado, desde que se plantem algumas dezenas de mudas. Com a neutralização, dizem esses críticos, a poluição torna-se moralmente permitida – ou pelo menos um pouco mais aceitável. Além disso, ainda que as árvores novas funcionem como filtros, tirando o CO2, calcula-se que seria preciso cobrir com elas cada metro quadrado de toda a superfície do planeta para neutralizar o excesso de dióxido de carbono acumulado na atmosfera. Tudo isso é verdade. Mas a ciência ambiental é ainda tão especulativa que tanto o cético quanto o fanático preservacionista podem estar errados. Na dúvida, é bom evitar os excessos. Ainda que não resolva o problema do efeito estufa, a neutralização é parte da solução. "É melhor neutralizar do que não fazer nada. É um começo", diz o engenheiro florestal Paulo Braga, diretor da Max Ambiental, empresa que elabora projetos de neutralização de carbono. Para Mario Monzoni, coordenador do centro de estudos em sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas, a neutralização só será eficaz se for acompanhada de uma drástica diminuição da queima de combustíveis fósseis no mundo. Caso contrário, não passará de mais um modismo.


Guiadas pelo marketing, as grandes companhias juram fazer as duas coisas: reduzir os poluentes e neutralizar as emissões que forem inevitáveis. "As empresas estão tentando dar uma resposta ao atual sentimento de culpa das pessoas", disse Rony Rodrigues, da Box 1824, consultoria especializada em análise de mercado. Num período de cinco anos, a companhia aérea inglesa British Airways reduziu em 8% a emissão de dióxido de carbono liberado na queima de querosene dos aviões. A companhia também cobra uma taxa extra dos viajantes que desejarem neutralizar seus vôos. Custa 14,49 dólares neutralizar o trecho Londres–São Paulo, responsável pela emissão de 1,07 tonelada de CO2 por passageiro. O parque de diversões Playcenter foi uma das últimas empresas brasileiras a aderir à moda: neutralizará o carbono do funcionamento de 35 atrações, plantando 10 904 árvores por ano até 2011. Famosos também surfam na nova onda ambiental. A dupla Sandy & Junior vai neutralizar todos os setenta shows deste ano e a gravação do seu novo CD. A Pindorama, produtora da atriz Regina Casé e de seu marido, Estevão Ciavatta, neutralizou, com 28 árvores, um comercial feito para a Africa, agência de Nizan Guanaes. As mudas plantadas serviram para abater os deslocamentos da equipe de cinqüenta pessoas, os gastos com energia e o lixo da produção. Brinca a atriz, para desespero dos ambientalistas: "Com a quantidade de árvores que plantei, já posso queimar muito carbono". O administrador de empresas Ronney Saverbronn da Cunha, 37, contratou uma consultoria para neutralizar um curso de MBA feito no ano passado. Serão necessárias sete árvores para compensar o custo ambiental da fabricação das 3.120 folhas de papel usadas, do trajeto de 15 quilômetros feito de carro durante noventa dias e da energia usada em sala de aula. "Agora pretendo neutralizar o nascimento do meu filho, Gabriel", disse Ronney, cuja mulher, Denise, está grávida de oito meses.

Mas quem se encarrega de fazer tantos cálculos e plantar tantas árvores? E quem fiscaliza tudo isso? Existe uma miríade de entidades especializadas na neutralização. A Max Ambiental já fez uma dezena de projetos no verão de 2005/2006. Para este ano, já há trinta outros engatados. A Iniciativa Verde, que também faz a neutralização para pessoas e empresas, teve quinze projetos em 2006. Desde janeiro, trabalha em outros 35. A Max Ambiental atua em parceria com a SOS Mata Atlântica, entidade que planta árvores muito antes da moda da neutralização. "Para nós, o plantio não é novidade. O que interessa é que as empresas, ainda que em busca do marketing, tenham aderido", declarou Adauto Basílio, diretor de captação de recursos e responsável pelos programas de reflorestamento da entidade. O custo dos projetos depende do número de árvores e das espécies plantadas. Pode chegar centenas de milhares de reais. Engenheiros florestais e especialistas em crédito de carbono estão sendo disputados a tapa pelas empresas especializadas em neutralização. Tudo para aliviar a culpa de clientes, grandes e pequenos, em faturamento e lucro. A última edição do relatório Carbon Down Profits Up, da entidade inglesa Climate Group, mostra uma evolução de adesões à causa: 74 companhias, de onze países, preocupadas com as emissões de carbono.

Como a neutralização não é obrigatória, nenhuma entidade governamental fiscaliza se os cálculos estão corretos ou se as árvores são realmente plantadas. Para não cair no conto-do-vigário, é bom verificar se a prestadora de serviço contrata alguma auditoria externa conhecida para analisar a execução dos trabalhos. As entidades mais sérias fazem isso. Como qualquer outro modismo, esse também tem sua cota de aberrações e hipocrisia. Palco de alguns dos piores crimes de corrupção (sete envolvendo até órgãos ambientais) da história brasileira, a Câmara dos Deputados anunciou que vai neutralizar suas atividades. Já foi encomendado um estudo para calcular a emissão de dióxido de carbono com transporte e consumo de energia elétrica dos 513 deputados. A idéia é compensar os danos ao meio ambiente. Pena que os parlamentares não possam neutralizar também danos de outra natureza.

Com sete árvores, o administrador de empresas Ronney da Cunha vai neutralizar o MBA que cursou em 2006. Gostou da idéia. Ele e sua mulher, Denise, planejam neutralizar o nascimento de Gabriel, o segundo filho do casal.

Menos fumaça no céu: a British Airways oferece passagens neutralizadas a passageiros que pagarem um pouco mais.

Na moda: a missa celebrada pelo papa Bento XVI em São Paulo terá a emissão de CO2 compensada.

Julia Duailibi Com reportagem de Cíntia Borsato

Fonte: http://veja.abril.com.br/210207/p_066.shtml (Conteúdo exclusivo para assinantes)

Parabéns, calouros de 2007

Mais de 1,5 milhão de jovens brasileiros começam neste mês a derradeira etapa de sua educação. Meus parabéns! O grande problema que vocês vão enfrentar é que o conhecimento humano está dobrando a cada nove meses. Seguindo esse raciocínio, dois anos depois de formados, entre 60% e 80% de tudo o que vocês aprenderam estará obsoleto, dependendo da profissão. Isso se seus professores ensinarem o que há de mais novo em sua especialidade, o que nem sempre acontecerá.

Vocês provavelmente encontrarão três tipos de professor. Os ultraconservadores, que ainda ensinam "conhecimentos" de 1880. Na realidade, dogmas de um mundo que não existe mais. Percebam como vocês encontrarão muito poucos professores que se definem como neoliberais, neomarxistas, neofreudianos ou neo alguma coisa. Neo significa novo. No fundo, não são progressistas como dizem, mas ultraconservadores. Acham que o mundo não mudou ou então pararam no tempo, como todo conservador.

Outro grupo de professores é o dos enganadores, aqueles que não se atualizam e dão aulas mesmo assim. Não se reciclam há anos, ensinam o que era novo dez anos atrás. Ou, pior, ensinam as mesmas coisas que eles próprios aprenderam quando estudavam. Se tiverem sorte, vocês também encontrarão um pequeno grupo de professores criativos e visionários, que criam e mostram como será o mundo de amanhã. São eles que vão inspirá-los a tentar fazer o que ninguém fez antes, são eles também que inspiraram quase todos os jovens que inventaram esses sites na internet.

O que muitos de seus professores ainda não perceberam é que o conceito de conhecimento humano mudou. Não existe mais o conhecimento perene, guardado a sete chaves, restrito às "lides acadêmicas". As universidades não são mais as "casas do saber", as "catedrais do conhecimento", como muitas se autodefinem. Hoje, o conhecimento humano é de curta duração, poderíamos até dizer descartável, usado duas ou três vezes e jogado fora, quando não faz mais sentido guardá-lo. Isso os obrigará a repensar e a gerar novo conhecimento, porque provavelmente o futuro precisará de soluções nunca vistas.

Estou exagerando um pouco para que vocês entendam aonde quero chegar. O importante é vocês aprenderem a criar conhecimento, e não somente a usar o conhecimento do passado. Eu utilizo o termo administrativo "conhecimento just in time". Vocês terão muitos problemas a resolver, e terão de saber como analisá-los, gerando uma solução ou "conhecimento" apropriado, que não necessariamente servirá para o resto da vida. Daqui a alguns anos, a situação será outra, requerendo nova análise e solução.

Que algumas coisas são perenes, como 2 + 2 = 4 e muitas leis da física, não há a menor dúvida. Mas o que estou sugerindo é que vocês tomem o cuidado de sempre questionar seus professores, para se certificar de que o conhecimento do passado será de fato útil no futuro. Max Weber, Keynes e Freud escreveriam a mesma coisa se estivessem vivos hoje? É isso que vocês precisam descobrir. Até pode ser que sim, mas é melhor desconfiar sempre.

O que eu peço a vocês, calouros de 2007, é que se concentrem em como gerar conhecimento. Como observar, como identificar variáveis relevantes, os personagens vitais do problema e os interesses. Como analisar alternativas e tomar decisões. Usei muito pouco das teorias que me ensinaram na faculdade. Meu sucesso profissional foi devido muito mais ao conhecimento que eu próprio gerei, que eu mesmo criei, do que às teorias e técnicas que mal me ensinaram.

A "faculdade" que vocês precisam adquirir é a da criação, da criatividade, da geração de conhecimento, e não a da erudição, do academicismo ou a da decoreba que se alastra pelo país.

Infelizmente, vocês terão de agradar aos dois primeiros tipos de professor repetindo o passado que eles querem ouvir, senão não serão aprovados. Mas aproveitem os próximos quatro ou cinco anos procurando e prestigiando os professores criativos, aqueles que de fato pesquisam o futuro e não somente o passado, e juntos criem o conhecimento para resolver os problemas atuais do Brasil, e mandem-nos para mim ou coloquem na internet.

Saibam distinguir quem é quem, e boa sorte!



Stephen Kanitz é formado pela Harvard Business School
(www.kanitz.com.br)
Fonte: http://veja.abril.com.br/210207/ponto_de_vista.shtml (conteúdo exclusivo para assinantes)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Projeto contra o racismo inunda Salvador de painéis fotográficos

É a cidade mais negra do Brasil, segundo as estatísticas: mais de 75% da população de Salvador -2,6 milhões de habitantes ao todo- são negros ou mulatos. Presente nos romances de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, nas canções de Dorival Caymmi ou Carlinhos Brown, no candomblé e na capoeira, foi a primeira capital do país e o primeiro porto de chegada de escravos. Hoje é um dos focos da diáspora africana.

Até 16 de fevereiro, a capital do estado da Bahia, fundada em 1549, recebe a maior exposição ao ar livre de sua história: 1.501 painéis com fotografias de mulheres, crianças e homens afro-descendentes ocupam as fachadas de edifícios no centro e na periferia, espalham-se por praças e avenidas, deixam-se ver na entrada dos centros comerciais. No total, são 9.073 m2 com fotos como as das campanhas publicitárias que, paradoxalmente, costumam mostrar jovens modelos louras ou de pele clara.

O projeto Salvador Negroamor revela a bela face africana de Salvador da Bahia. Ele transforma a cidade em uma sala de exposição para os que não pisaram e jamais pisarão numa galeria de arte. Para tanto, o fotógrafo, publicitário e promotor cultural Sérgio Guerra, 45, retratou cerca de mil pessoas anônimas. Tenta dar destaque aos que não são visíveis, e provocar uma reflexão. "Vejo uma cidade dividida, preconceituosa e muitas vezes racista.

O conceito de cidade alta e cidade baixa aqui é literal", explicou no jornal "Correio da Bahia" esse pernambucano, filho de um político perseguido pela ditadura e de uma militante do movimento em defesa dos favelados. Há um abismo social e econômico determinado pela hierarquia de raças: o índice de pobreza é diretamente proporcional à cor da pele. Os níveis mais baixos de educação, os empregos menos atraentes e os piores salários são para os afro-descendentes.

Divulgar a cultura

Salvador Negroamor também é o nome de uma associação civil sem fins lucrativos cujos objetivos são combater o racismo, divulgar a cultura africana e afro-descendente, desenvolver projetos culturais, educacionais, sociais e econômicos com o fim de melhorar a qualidade de vida e das comunidades necessitadas; tentar estabelecer padrões de convivência, referências e exemplos em prol da democracia racial.

Além dos painéis espalhados por toda a cidade, foi publicado um livro com uma seleção dessas fotos - escolhidas entre mais de 16 mil - e um disco com gravações de filhos ilustres como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Margareth Menezes, Virgínia Rodrigues e Mateus Aleluia. A ONG Salvador Negroamor criou um portal de discussão e informação (www.salvadornegroamor.org.br). Também organiza uma escola para alfabetização de adultos e reforço escolar para filhos dos trabalhadores do mercado de São Joaquim. Essas ações deverão culminar com a criação de um fórum mundial africanista permanente em 2009.

Em um texto intitulado "Sinfonia em Negro", o escritor José Eduardo Agualusa diz: "Atenção, pois: estas não são só imagens destinadas a encantar; são, mais que isso, parte de um projeto político destinado a inquietar. É uma revolução que sai à rua". O primeiro movimento de uma sinfonia em negro, em "Muitas Cores", Paulinho Camafeu cantava: "Branco, se você soubesse / o valor que negro tem / tu tomava banho de piche, ficava preto também".

Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2007/02/13/ult581u1993.jhtm
(Link do uol apenas para assinantes.)