quinta-feira, 2 de abril de 2009

As derrotas de Março

Míriam Leitão, O Globo, 29/03/2009


Antes que março acabe, eu queria dizer o que me derrota. A Itália descobriu um caso repugnante de estupro sequencial de pai e filho contra a mesma mulher, filha e irmã dos dois. A Áustria encarcerou o monstro que manteve a filha no porão, prisioneira de estupros contínuos. Aqui, a discussão da menina que em Recife foi estuprada e engravidou do padrasto ficou em torno da decisão medieval do bispo.

Estes são apenas casos de março, outros surgiram: o da menina de 13 anos, no Brasil, que, grávida do pai - por quem passou a ser violentada a partir da morte da mãe -, decidiu ter o filho. Cada um dos dramas é tão vasto.

Penso nestas meninas e mulheres e na antiguidade da sua pena. Condenadas, antes de nascer, pelo mais intratável dos lados da opressão à mulher: o suplício sexual.

Melhor seria escrever uma coluna racional, com os dados que provam a exclusão da mulher do poder no mundo, ou da sua discriminação no mercado de trabalho, ou do preconceito embutido nas propagandas. Seria menos doloroso.

Há pesquisas novas, interessantes. Com os dados, eu provaria que a mulher avançou nos últimos anos, e que a sociedade equânime ainda está distante. Falar desse aspecto do problema seria até um alívio. Mas o que tem me afligido são esses casos espantosamente cruéis que acontecem em países diferentes, classes sociais diferentes, religiões diferentes.

A vítima é sempre a mulher. A sharia, que voltou a ser código aceito em todo o Paquistão, condena a mulher a receber a pena no lugar de alguém da família

que tenha cometido um delito. Normalmente, a pena é estupro público e coletivo. Foi assim com a notável Mukhtar Mai, a paquistanesa que venceu seus estupradores em uma luta desigual e heróica na Justiça comum.

No livro "A desonrada", ela contou seu suplício e sua vitória. Eu poderia fingir que não sei das estatísticas da violência contra a mulher, e pensar que cada caso é apenas mais um louco em sua loucura, pegando uma vítima aleatória. Melhor ainda, poderia fugir completamente do tema. Afinal, esta é uma coluna de economia e as pautas e assuntos são inúmeros. A nova regulamentação do mercado financeiro americano para prevenir crises como a atual; ou o desequilíbrio econômico e financeiro dos países do Leste da Europa; ou ainda o risco de déficit em conta corrente nos países exportadores de commodities metálicas.

Assuntos áridos, fáceis. Qualquer um deles permitiria que esta coluna fosse para longe do horror imposto às mulheres por pais, padrastos, irmãos, namorados, ex-namorados, maridos, ex-maridos.

Em qualquer um desses temas eu teria muito a dizer, mas o que dizer da morte da jovem Ana Claudia, de 18 anos, esfaqueada no pescoço pelo pai do seu filho, de quem tinha se afastado, saindo da Bahia para São Paulo, para fugir dos maus-tratos frequentes? Ou Eloá, a menina de 15 anos morta pelo ex-namorado, depois de sofrer por dias, em frente a uma polícia equivocada? Na época do caso, o comandante da operação, o coronel Eduardo Félix de Oliveira, definiu Lindemberg Alves, o assassino de Eloá, como um "garoto em crise amorosa". Era um algoz que espancou e matou sua vítima.


O abuso de crianças não escolhe sexo. A pedofilia faz vítimas entre meninos e meninas, e em ambos é igualmente abjeta e inaceitável. Mas a frequência, a crueldade, a persistência dos ataques às meninas mostram que o crime é parte de um outro fenômeno mais antigo: o da violência contra mulheres de qualquer idade.

As leis que mantêm a desigualdade em inúmeros países, com o argumento de que essa é a cultura local, o alijamento da mulher das estruturas de poder, a recorrência de casos em que ex-namorados ou maridos matam para provar que ainda têm poder sobre suas vítimas são alguns dos vários lados de uma velha distorção.

Como estão enganadas as mulheres que, por terem tido algum sucesso em suas carreiras, acham que a questão da condição feminina, a velha questão feminista, está ultrapassada.

Apenas começou o trabalho de construir um mundo de respeito. Mas se é fácil discutir políticas públicas para vencer o poderoso inimigo da desigualdade, é paralisante o tema dessa vasta violência praticada em todos os países, em todas as culturas, em tantas casas contra meninas e mulheres que não conseguem se defender.

É espantoso o caso da mulher italiana, de 34 anos, vítima desde os nove anos de idade dos estupros do pai e depois do irmão, que também estuprou suas próprias filhas. Ela chegou a ir à polícia há 15 anos, mas não foi levada a sério. Hoje tem problemas psicológicos.

Como não ter? Pode-se encarcerar cada um dos estupradores e condená-los. Eles merecem toda a punição que a lei de cada país comportar. Mas é preciso ver o horizonte: os casos são frequentes demais, as estatísticas são fortes demais, para que sejam apenas aberrações eventuais.

Março tem um dia, o oitavo, que é "da mulher". Não pela efeméride, mas por envolvimento com o tema, eu costumo aproveitar a data para analisar, neste espaço, algum aspecto da discriminação contra a mulher. Mas, este ano, a imagem da pequena e frágil menina de Recife me derrotou.

Tenho tido medo que nunca acabe o sofrimento das pessoas que integram a parte da Humanidade à qual pertenço. Fico, a cada novo caso, como os muitos deste março, um pouco mais derrotada.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

“MINHA ARMA É DIGNIFICAR AS VÍTIMAS DA GUERRA”

Gervasio Sánchez em Madri em fevereiro de 2008 / foto Mikkel Larsen

por Jairo Máximo
fotos Gervasio Sánchez e Mikkel Larsen
Madri (Espanha):

Gervasio Sánchez (Córdoba, Espanha, 1959) Fotógrafo e jornalista.

Já cobriu diferentes conflitos nos cinco continentes. Atualmente trabalha para os diários espanhóis Heraldo de Aragón e La Vanguardia, e também colabora com as rádios Cadena Ser e BBC. Desde 1998 é Enviado Especial para a Paz da Unesco. Já recebeu diversos prêmios e publicou vários álbuns fotográficos, entre eles: Cerco à Sarajevo; Vidas Minadas; Kosovo: crônica da deportação; Meninos de guerra; A caravana da morte: as vítimas de Pinochet, e Serra Leoa: guerra e paz.

Neste ano 2008 estará apresentando na Espanha a elogiada exposição itinerante “Vidas Minadas― dez anos depois”, que concluirá em Paris, coincidindo com a comemoração do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Acaba de ganhar o prestigioso Premio Ortega y Gasset de Fotografia, com uma instantânea da série “Vidas Minadas”, que segundo o júri “traduz com grande força expressiva a fragilidade e vulnerabilidade das pessoas submetidas à arbitrariedade e brutalidade dos conflitos bélicos”.
“Vidas Minadas” é um projeto de sensibilização social que Gervasio realiza desde 1995 contra a utilização das minas em todo o mundo. Segundo ele, o impacto humanitário desta arma é mais profundo e devastador que os efeitos de qualquer outra arma: não só amputam membros e matam, também impedem o livre acesso dos camponeses as suas terras, das mulheres ao poço de água ou das crianças ao colégio.


Nesta entrevista exclusiva, concedida em Madri, ele revela que “a fotografia transcende mais que o escrito porque não necessita de tradução simultânea”, fala de sua atuação e da profissão.

Quem é Gervasio Sánchez?

Um simples fotógrafo e repórter que trabalha em áreas de conflitos: lugares onde ocorrem fatos lamentáveis provocados pelo homem.

Quando você descobriu o jornalismo e a fotografia?

Comecei a viajar quando tinha 19 anos. Aliás, sou jornalista porque queria viajar. Quando era menino pensava que e única maneira que existia para viajar era ser jornalista... Na minha primeira viagem já levei uma câmera fotográfica. Mas foi a partir do final dos anos 80 e princípios dos 90 que compreendi que a câmera era uma ferramenta que podia utilizar para fazer um trabalho e que era preciso ter um conceito. Mas nunca fiz um curso de fotografia. Não sei nem revelar...

Por que resolveu ser fotógrafo?

Porque sou jornalista e vice-versa. Creio que a fotografia transcende mais que o escrito porque não necessita de tradução simultânea. Ela tem a possibilidade de impactar em qualquer cultura ou grupo étnico.

Qual é o papel da palavra em seu trabalho?

Dedico-me a histórias próprias. Escrevo o texto e faço a fotografia. Quero que seja um conjunto.

Como nasceu o projeto “Vidas Minadas”?

Nasceu casualmente, mas com duas razões de fundo. A primeira, uma revista espanhola dedicada a futilidades ―não uma revista ou um jornal sério― me encarregou de fazer um trabalho sobre mutilados pelas minas explosivas, em 1995. Isto me proporcionou a possibilidade de viajar a Angola. Lá havia minas em todos os lugares. Constatei a dramática situação em que vivem estas pessoas. A segunda razão é que isto coincidiu com o fato de que eu estava cansado de ir de guerra em guerra e ir embora quando era assinado o acordo de Paz. Na realidade, a paz é o reinicio de um pós-guerra, que é tão duro como a guerra em si. Inclusive as minas começam a aparecer é quando chega à paz, porque durante a guerra elas são colocadas para proteger posições militares. Quando os militares deixam o terreno, eles as deixam abandonadas. No entanto, com a chegada da paz produz-se a liberdade de movimentos da população civil. E as minas estão ali, esperando as pessoas.

No que consiste a exposição “Vidas Minadas―10 anos depois”?

É uma exposição de 100 imagens sobre os estragos que causam as minas no mundo inteiro, diferentes tipos de minas e próteses, um documentário e um álbum fotográfico de 365 retratos de mutilados. Trata-se da continuação de um projeto fotográfico que apresentei em 1997 que documentava as vítimas destas armas em países como Afeganistão, Angola, Bósnia, Camboja, Colômbia, El Salvador, Iraque, Moçambique ou Nicarágua. Para mim, “Vidas Minadas” é um projeto sem fim.

Na apresentação da exposição no Instituto Cervantes de Madri, a cargo do filósofo José Antonio Molina, do juiz Baltasar Garzón, a atriz Luisa Martín e algumas das vítimas retratadas, você afirmou: “Minha exposição é incômoda. Sou incômodo”. Qual é o preço disto?

Quando seu discurso não é politicamente correto, existe muita gente que se sente incomodada. No entanto, faço um jornalismo que impossibilita que me golpeiem, pois sou eu o que tem uma informação importante de uma zona de guerra e ninguém pode tirá-la de mim. Seria outra coisa se eu fizesse um jornalismo local: Madri, Barcelona, Sevilha. É mais perigoso exercer o jornalismo local com liberdade que o internacional, que dá prestígio ao meio de comunicação.

Das histórias que você já cobriu qual a que mais lhe marcou?

São as histórias que vi desde o princípio. Algumas são dramáticas. A da angolana Joaquina que perdeu suas duas filhas, uma perna, foi abandonada pelo marido e vive na pobreza absoluta. Também é dramática a história do cambojano Skaheurm Man. Eu estive na sala de operação no momento em que lhe cortaram sua perna.

Qual imagem captada que mais lhe inquietou?

Encontrar ao menino Adis Smajic, em um hospital de Sarajevo, em 1996, com a cara deformada por uma mina, entre a vida e a morte, me comoveu.

Qual foi à região de conflito que mais lhe chocou?

Provavelmente o país que mais choca é aquele que você está para ir. Em 1996, quando cheguei a Cabul, capital do Afeganistão, fiquei impressionado. Cheguei e vi uma metrópole totalmente destruída que acabava de sair de uma guerra civil tremenda, onde até seis grupos armados combateram no centro urbano. Por todas as ruas se podia encontrar minas que ocasionavam diariamente muitos acidentes. Os hospitais estavam cheios de crianças. Elas procuravam restos de projétil para poder vendê-los, e depois comer, porém encontravam as minas e se explodiam pelo ar.

É uma tragédia, cenas muito duras, não é?

Sim. Encontro histórias que acabam marcando com contundência minha vida. Acabo sendo um pouco arrastado por minha experiência, coisa que, desgraçadamente, muitas vezes, têm a ver com a morte, com a violência e o estilo brutal de atuar do homem.

Como você enfrenta emocionalmente tanta desgraça e sofrimento?

(silêncio) É um trabalho...

Sente desassossego?

(silêncio) Minha arma de trabalho é poder dignificar as vítimas da guerra. Mostrá-las com nomes e sobrenomes. Então, suponho que esta é minha armadura psicológica. É difícil trabalhar e ver como a gente sofre. Saber que existem umas causas concretas e responsáveis com nome e sobrenome. No obstante, quando faço uma exposição como esta, muitas pessoas que vêm vê-la me dizem que se inquietam com as imagens e se sentem solidárias com o trabalho. Inclusive alguns me parabenizam e recebo isto como combustível.

Onde é preciso realizar um trabalho de limpeza de minas?

Em 78 países, entre eles Afeganistão, Angola, Bósnia, Colômbia, Camboja e Iraque. Desde quando assinaram o Tratado de Otawa contra as minas, em 1997, somente em seis países elas foram retiradas. Quarenta países, dentre os quais se destacam Estados Unidos, Rússia e China ―principais produtores mundiais de minas e com direito a veto no Conselho de Segurança da ONU― continuam negando assinar o acordo. Anualmente 15 mil novas vítimas passam a fazer parte de um impressionante exército de mutilados. Segundo a ONU, faltariam 1.100 anos e 30 bilhões de euros para erradicar os 167 milhões de minas plantadas em 78 países. O custo de uma mina terrestre não alcança R$ 7, porém localizá-la, desativá-la e destruí-la custa R$1.700.

Você disse, ao vivo, no canal 2 da Televisão Espanhola que “durante muitos anos a Espanha exportou morte”; e que “enquanto o governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) exporta bombas de racimo (ou bomba cluster que é constituída por centenas de pequenas bombas que se disseminam sobre uma grande área), está fazendo um temível favor para a humanidade”. E agora quê?

(silêncio) Se estou documentando um drama é minha obrigação denunciar quem são os responsáveis. Não posso chegar à TV e dizer superficialidades. Tenho que dizer que o governo socialista duplicou a venda de armas, que atualmente somos a oitava potência do mundo em venda de armas, e que a Espanha está na Liga dos Campeões de vendas de armas. Como isto é possível? E ainda mais: como é possível que continuemos fabricando e vendendo armas, tipos de bombas de racimo cuja ação é devastadora e atua como uma mina: explode, mata e mutila? Hoje, na Espanha existem quatro empresas que estão fabricando estas minas. Não são empresas estratégicas. Isto é uma vergonha. É intolerável. Isto é preciso dizer com clareza que é isso que faz o mesmo governo que todo dia fala de aliança das civilizações e da luta pela paz.

O que mais se precisa dizer?

Que os ex-primeiros-ministros espanhóis ―Adolfo Suárez, Leopoldo Calvo Sotelo, Felipe González e José Maria Aznar― foram vendedores de armas. Que o atual primeiro-ministro, José Luis Rodríguez Zapatero, também é um vendedor de armas. Todos permitiram a venda de armas a países com conflitos armados internos ou regionais. Por exemplo, se amanhã se cria um Tribunal Penal Internacional para julgar os responsáveis pela venda destas armas, estes senhores serão chamados a depor.

Haya para eles?

Lembro também como Bill Clinton e Al Gore estão tentando nos vender uma idéia de trabalho que contradiz as políticas de seus oito anos no governo, quando tomaram decisões vergonhosas. Eles não assinaram o Tratado de Ottawa quando estavam governando. Se tinham tanta sensibilidade por que não o assinaram? Essa gente está se enriquecendo com a denúncia fabricada.

O que pensa das guerras?

Que são o fracasso absoluto do Homem.

Em sua opinião, quem manda mais hoje no mundo?

Isso é um problema grave. É evidente que se são os políticos que mandam, não demonstram. E se mandam, não fazem nada para evitar este vergonhoso mercado de armas. Conseqüentemente, são cúmplices e culpados. E se não podem fazer nada que digam isso alto e claro e não utilizem o subterfúgio do segredo de Estado ou da mentira constante. Se é o primeiro-ministro Zapatero quem manda na Espanha, ele está permitindo que armas espanholas matem ou mutilem milhares de seres humanos inocentes.

O que você pensa da imprensa espanhola?

Vive um momento crítico. Já passamos dos anos da felicidade que se produziu depois da queda do franquismo, quando se lutava pela democracia, pelos direitos humanos. Hoje em dia ela não é mais virgem, têm interesses econômicos importantes. Cada vez mais existem grupos de mídia que obedecem a estratégias que não tem nada a ver com o jornalismo e que, além disso, esquecem de muitos temas relevantes. O purismo não existe no jornalismo.

Qual é a tua máxima na vida
?
Não tenho. O que eu quero é fazer meu trabalho bem feito. Mostrar as contradições do mundo. Fugir do jornalismo de promoção. Considero que o jornalismo é tão importante como a medicina e a educação. Uma sociedade sem um bom jornalismo é uma sociedade fracassada.

Como vê o trabalho de Salgado e o projeto Gênesis, que defende a biodiversidade e as formas de vida virgens do planeta?

Sebastião Salgado é um grande fotógrafo. Gosto muito do projeto América. Hoje ele faz um trabalho de documentação importantíssimo. E com a idade que ele tem...

Quando os brasileiros terão o privilégio de contemplar “Vidas Minadas: dez anos depois”?

É complicado mover e montar esta mostra. Mas eu adoraria levá-la para o Brasil, um país supostamente do terceiro mundo que mais vende armas. Brasil é o campeão.

Você tem algum novo projeto fotográfico?

Sim. É sobre os desaparecidos das ditaduras e guerras no Afeganistão, Argentina, Colômbia, Chile, Guatemala, Iraque, Peru, Brasil e outros países dos cinco continentes.

Vale uma foto mais que mil palavras?

Não é que uma imagem valha mais que mil palavras, mas sim que a imagem pode chegar a mais pessoas, sem filtro e tradução simultânea.

Original aqui.