quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Desfiz 75 anos

rubem alves

Minha formação filosófica impõe-me o uso preciso das palavras porque as palavras devem revelar o ser.
E é assim, usando de forma precisa as palavras, comunico aos meus leitores que ontem, dia 15 de setembro, eu desfiz 75 anos...
Haverá leitores que se apressarão a corrigir meu uso estranho, nunca visto, da palavra "desfazer", atribuindo-o, quem sabe, a um início do mal de Alzheimer.
Todo mundo sabe que, para se anunciar um aniversário, o certo é dizer "fiz" tantos anos.
No meu caso, "fiz" 75 anos...
Mas o verbo "fazer" sugere algo que aumenta, um crescimento do ser, o artista e o artesão "fazem"...
Mas, que ser aumenta com a passagem do tempo, esse monstro que devora os seus filhos?
O que aumenta é o vazio.
Esses anos que o aniversariante distraído anuncia como anos que ele fez são, precisamente, os anos que ele desfez, o tempo que já passou, que deixou de ser, os anos que o tempo devorou.
Por isso acho um equívoco filosófico perguntar a alguém:

"Quantos anos você tem?".
O certo seria perguntar "quantos anos você não tem?".
E ela responderia "não tenho 42 anos", "não tenho 28 anos".
Porque esse número de anos indica precisamente os anos que ela não tem mais. Nos aniversários, então, a maneira correta de se dirigir ao aniversariante é perguntando-lhe "quantos anos você está desfazendo hoje?".
Com base nessas reflexões filosóficas acho extremamente estranho e mesmo de mau gosto esse costume de o aniversariante soprar as velinhas acessas para que elas se reduzam a um pavio negro retorcido.
Aí, nesse momento, todos gritam e riem de alegria e cantam o
"Parabéns pra você", em louvor a essa "data querida..."
Bachelard, no seu delicadíssimo livro
"A Chama de uma Vela",
que nunca será best-seller,
nos lembra que uma vela que queima é uma metáfora da existência humana.
Há alguma coisa de trágico na vela que queima:
para iluminar, ela tem que morrer um pouco.
Por isso ela chora, e suas lágrimas escorrem sobre o seu corpo sob a forma de estrias de cera.
Uma vela que se apaga é uma vela que morre.
Algumas velas se consomem todas, morrem de pé, têm de morrer porque a cera já se chorou toda.
Outras morrem antes da hora -elas não queriam morrer-, mas veio o vento e a chama se foi.
As velinhas acesas fincadas no bolo não querem morrer.
Elas vão ser assassinadas por um sopro.
O sopro que apaga as velas é o sopro que apaga a vida...
Por isso não entendo os risos, as palmas e a alegria que se segue ao sopro que apaga as velas.
Uma vela que se apaga é um sol que se põe, disse Bachelard.
E todo pôr-do-sol é triste...
Uma vela que se apaga anuncia um crepúsculo.
Por isso eu prefiro um ritual diferente, ritual que é uma invocação.
Eu acendo uma vela pedindo aos deuses que me dêem muitos anos a mais de vida, esses anos que se seguirão, que são o único tempo que realmente possuo...
Assim fiz, acendi uma vela, meus amigos à minha volta.
Que coisa boa é ter amigos, especialmente quando o crepúsculo e a noite se anunciam!
Acho que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas nem por ondas cerebrais.
Somos humanos, permanecemos humanos enquanto estiver acesa em nós a esperança da alegria.
Desfeita a esperança da alegria, a vela se apaga e a vida perde o sentido.

Rubem Alves
Folha de S.Paulo 16/09/08

Retirado daqui.

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